27/01/08


"Silvestre, meu doido, meu gato. Nunca viste uma rapariga nua a lavar-se? E se fosses um príncipe encantado? Corava de vergonha, escondia-me de ti. Achas-me bela? É por o sol ter dourado a pele do meu corpo? Por a minha boca ser como um fruto que parece estar sempre a dar-se? Fiz-me bela para ti, e no reflexo dos teus olhos de gato sinto-me feliz. Sabes o que é isto? É um figo preto,que não é preto, mas azul. E dentro é cor-de-rosa,e dele corre uma lágrima de mel."

( fotograma do filme "à flor do mar" do João César Monteiro.)

23/01/08

música para percussão e celesta

anjo meu, obrigado
pelas benesses que me deste,
pelo instante-estátua-equestre
do teu sorriso consolado

não faço troça, querubim
mas este mundo é tão diferente
tu não pensavas seriamente
que eu quisesse olhos de marfim?

vens lá das velhas poesias
de acónito e de pentagrama
enquanto eu numa semana
não peno mais que sete dias

mas mesmo assim, anjo meu tão moral,
eu agradeço o muito que puseste
nesse carinho-estátua-equestre
todo candura jovial

Mário Cesariny, Manual de Prestidigitação, Assírio & Alvim

21/01/08

transcrição

"Assim eu vivo, agora: não sei dar troco ao trocar das falas, nem soltar palavras sem que toda a gente sinta que os meus dizeres recobrem outros, os que assustam. Assim o falar directo e verdadeiro se me coalhou, em grande parte por fraqueza de insuportáveis outros - tu também incluso, meu amor; sagrada que fui para apanhar com nojos, meus e alheios. Minha maturação progressivamente mensageira do que toda a gente quer esquecer - eu também inclusa, meu amor: o vacilar da Vida acometida. Assim promovida fui, a mensageira do a-esquecer pelas banais pessoas. Que esquecendo são tantas vezes apanhadas de surpresa; e logo caem, cairão como caíram outras. As multidões ceifadas: quem pudesse mostrar isso a todos.
(...)
Mas nos meus frágeis, quotidianos movimentos, sei sobretudo isto: o que é acordar (ou ser acometida em pleno dia), gemendo sem o mínimo dos sons. Bradando por socorro em línguas mudas, todo o viver toldado em agonia de fazer jorrar suor como de sangue. E isto dia e noite; e outra vez, mais outra outra vez. Assim prossigo, no horror. Sem alívio que não seja o adormentamento, deitada ou mesmo a pé, bamboleante. Cortando as dores com umas drogas que - sei isso - tudo agravarão passado o seu efeito. Mas drogas essas que interrompem o sofrer inominável de ser rasgada por feras em pleno estofo de um maple em sala burguesa, com conversa e riso à volta: a introdução na arte de alívio de momento: saber que pouco a pouco a minha carne contorcida se distenderá - durante um pouco. (O alívio de momento: quem não passou por isso, como pode saber seja o que for? Todos por isso passam, mas de leve, e fazem por esquecer). Mas eu, amor: isto não pode ter-me acontecido apenas por desleixo. Mas amor, meu amor, porque foi que viemos a nos abandonar uma ao outro; como é que eu e tu deixámos que entre nós se interpusesse esta aparência de abandono?"

Nuno Bragança, "directa", d. quixote

20/01/08

O sopro de alegria

– Na tua opinião, o que é que mais importa num homem?
– A plenitude maravilhosa que eu sinto ao estar com ele, e isso nas coisas mais fúteis da existência. O sopro de alegria que ele me transmite. É assim que uma pessoa pode reconhecer a riqueza do amor que um homem encerra.

Albert Cossery, A Violência e o Escárnio

18/01/08

Ele

"O salteador sabe bem, por experiência própria, o que sente uma pessoa quando as ninfas a puxam pelas pernas e a arrastam para o fundo do rio."

Robert Walser, O Salteador, Relógio D' Água

15/01/08

o bater de asas

"... a paixão das melodias era para ele como o bater de asas de grandes pássaros sombrios, como se pudesse ver as linhas que o seu voo traçava na sua alma."
Robert Musil, As perturbações do pupilo Törless, Dom Quixote

07/01/08

Rua 1º de Dezembro*

À hora X, no Café Portugal
à mesa Z, é sempre a mesma cena:
uma toupeira ergue a mãozinha e acena…
Dois pica-paus querelam, muito entusiasmados:
que a dita dura dura que não dura
a dita dita dura – dura desdita!
Um pássaro cantor diz que isto assim é pena
e um senhor avestruz engole ovos estrelados.

Mário Cesariny, "nobilíssima visão", Assírio & Alvim



*para a f. :

só dois ou três apartezinhos meio incompletos, para dizer, ou não, o porquê do poema aqui colocado.
não sou destas coisas que é o mesmo que dizer: destas coisas não sou. coisas estas que não sei bem o que são.

os acasos....... mais este puro acaso

digo: "adiante, adiante", guinando e metendo na rua que interessa. foi esta a rua onde abandonei, sem desculpa aceitável, as tuas palavras. este é o poema que encontrei, por acaso, no primeiro abrir do livro. o acaso, sempre o acaso a ocasionar acasos.

a despropósito

"Visualizou o Manoel de Oliveira provocando inquietação nos clientes daquele bar, na noite em que o tinha conhecido. O portuense estava realizando um filme sobre o pão. Uns dias antes, observara algo que o tinha posto em transe. Tratava-se de um operário que intervinha numa dada fase de produção do pão, e que adquirira um ritual notável em matéria de autotaylorização. O Manoel de Oliveira tinha-se levantado da cadeira e começara a mimar esse ritual, no qual desempenhava papel de relevo um «passo travadinho». E nesse passo, o realizador percorria o bar. Para cá e para lá, para cá e para lá. Como se tratava dos movimentos que ocupavam a maior parte de um viver humano, o Manoel de Oliveira repetira a sua imitação o tempo suficiente para que a clientela do bar ficasse desconfortável."

Nuno Bragança, "directa", D. Quixote

04/01/08

A (I)legibilidade do livro

O Livro está aberto e há demasiada luz.
Tudo o que escreves está contido nesse livro de letras brancas como a tua morte.
Será possível ler o sol e o silêncio desse livro branco eternamente branco e silencioso?
Como conter a ávida necessidade de devorá-lo como se o livro pudesse matar-nos a irredutível fome de uma linguagem legível e luminosa?
Estamos perante a impossibilidade de ler por um excesso de luz que é a um tempo a nossa morte e a improvável possibilidade de escrever o que não lemos.
Devoramos o livro e com os olhos cegos de brancura transformamos a impossível leitura na escrita de uns signos imediatos que devolvem a linguagem da luz apagada pela luz.
António Ramos Rosa, Quando o Inexorável, 1983

03/01/08

lições do precípicio


"As pernas das mulheres são compassos que percorrem o globo terrestre em todas as direcções, dando-lhe equilíbrio e harmonia."
( fotograma do filme "l'homme qui aimait les femmes" do Truffaut.)