Este é o amor das palavras demoradas
Moradas habitadas
Nelas mora
Em memória e demora
O nosso breve encontro com a vida
Sophia de Mello Breyner Andresen, O Nome das Coisas, Caminho
23/02/08
da elasticidade
"Há em certas palavras que habitualmente empregamos uma mola escondida que de repente as abre até ao fundo, no-las explica na sua intimidade excepcional: depois a palavra retrai-se, retoma a sua forma banal e circula insignificante, desgastada pelo hábito e pelo maquinal."
Alphonse Daudet, "Sapho", trad. Miguel Serras Pereira, d. quixote
Alphonse Daudet, "Sapho", trad. Miguel Serras Pereira, d. quixote
Enquanto Longe Divagas
I
E através de um mar desconhecido esqueces a palavra
- Enquanto vais à deriva das correntes
E fugitivo perseguido por inomeadas formas
A ti próprio te buscas devagar
- Enquanto percorres os labirintos da viagem
E no país de treva e gelo interrogas o mudo rosto das sombas
- Enquanto tacteias e duvidas e te espantas
E apenas como um fio te guia a tua saudade da vida
Enquanto navegas em oceanos azuis de rochas negras
E as vozes da casa te invocam e te seguem
Enquanto regressas como a ti mesmo ao mar
E sujo de algas emerges entorpecido e como drogado
- Enquanto naufragas e te afundas e te esvais
E na praia que é teu leito como criança dormes
E devagar devagar a teu corpo regressas
Como jovem toiro espantado de se reconhecer
E como jovem toiro sacodes o teu cabelo sobre os olhos
E devagar recuperas tua mão teu gesto
E teu amor das coisas sílaba por sílaba
II
É como ave no ar veloz detida
Tudo em mim se cala para escutar o chão do teu regresso
III
Pois no ar estremece tua alegria- Tua jovem riqueza de arbusto -
A luz espera teu perfil teu gesto
Teu ímpeto tua fuga e desafio
Tua inteligência tua argúcia teu riso
Como ondas do mar dançam em mim os pés do teu regresso
Sophia de Mello Breyner Andresen, O Nome das Coisas, Caminho
10/02/08
sentença
08/02/08
Estátua
Nas suas mãos a voz do mar dormia
Nos seus cabelos o vento se esculpia
A luz rolava entre os seus braços frios
E nos seus olhos cegos e vazios
Boiava o rasto branco dos navios
Sophia de Mello Breyner Andresen, No Tempo Dividido, Caminho
Nos seus cabelos o vento se esculpia
A luz rolava entre os seus braços frios
E nos seus olhos cegos e vazios
Boiava o rasto branco dos navios
Sophia de Mello Breyner Andresen, No Tempo Dividido, Caminho
estado de necessidade
"Arranjou outro ofício: passava para a Outra Banda as mulheres que vêm ao Porto com as suas canastras e que depois, no regresso, embarcam na lingueta de Lordelo. A passagem nesse tempo custava trinta réis, o que, evidentemente, não lhe chegava para beber à sua medida. Puxou pela imaginação - e abriu no fundo do barco um furo que tapava com uma rolha.
- Embarquem, meninas! Embarquem! - dizia o rapaz que o ajudava chamando a freguesia. Embarcavam as mulheres aos ranchos e , depois de tudo arrumado, toca a remar. Meio do rio - Alto! - dizia ele ao rapaz. E o rapaz parava. E ele baixava-se e tirava a rolha. E o esguicho repentino de água enchia de terror o mulherio, que se punha de pé aos gritos.
- Não se mexam! Agora quem quiser chegar à Outra Banda tem de dar mais um pataco!"
Raul Brandão, "os pescadores"
- Embarquem, meninas! Embarquem! - dizia o rapaz que o ajudava chamando a freguesia. Embarcavam as mulheres aos ranchos e , depois de tudo arrumado, toca a remar. Meio do rio - Alto! - dizia ele ao rapaz. E o rapaz parava. E ele baixava-se e tirava a rolha. E o esguicho repentino de água enchia de terror o mulherio, que se punha de pé aos gritos.
- Não se mexam! Agora quem quiser chegar à Outra Banda tem de dar mais um pataco!"
Raul Brandão, "os pescadores"
06/02/08
o respeitinho não é mais bonito do que isto
"Eis o que Gogol escreveu ao crítico Pogodin quando a mulher deste morreu e o homem estava louco de dor: «Jesus Cristo ajudá-lo-á a ser um cavalheiro, que não é nem por educação nem por inclinação, é ela que fala pela minha voz», uma carta absolutamente única na correspondência de pêsames."
Vladimir Nabokov, "Nikolai Gogol", trad. Carlos Leite, assírio & alvim
O estrangeiro
-Quem é que tu amas mais, homem enigmático, diz: o teu pai, a tua mãe, a tua irmã ou o teu irmão?
-Eu não tenho pai, nem mãe, nem irmã, nem irmão.
-Os teus amigos?
-Usas uma palavra cujo sentido me é, até hoje, desconhecido.
-A tua pátria?
-Ignoro em que latitude fica.
-A beleza?
-Amá-la-ia de boa vontade, deusa e imortal.
-O ouro?
-Odeio-o como vós odiais a Deus.
-Bom, o que é que tu amas, então, extraordinário estrangeiro?
-Eu amo as nuvens...as nuvens que passam...além...além...as maravilhosas nuvens!
Charles Baudelaire, "o spleen de Paris", trad. Jorge Fazenda Lourenço, relógio d'água
-Eu não tenho pai, nem mãe, nem irmã, nem irmão.
-Os teus amigos?
-Usas uma palavra cujo sentido me é, até hoje, desconhecido.
-A tua pátria?
-Ignoro em que latitude fica.
-A beleza?
-Amá-la-ia de boa vontade, deusa e imortal.
-O ouro?
-Odeio-o como vós odiais a Deus.
-Bom, o que é que tu amas, então, extraordinário estrangeiro?
-Eu amo as nuvens...as nuvens que passam...além...além...as maravilhosas nuvens!
Charles Baudelaire, "o spleen de Paris", trad. Jorge Fazenda Lourenço, relógio d'água
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