27/06/08

Litania

[...] Spurius*, triste, de olhar fixo, com as mãos a tremer, gagueja:
– Houve um tempo em que eu não existia e houve um tempo em que tu não existias. Haverá talvez um tempo em que eu deixe de existir e tu existas, ou talvez um tempo em que tu não existas e eu exista. Serão sem dúvida os tempos mais tristes. Depois haverá um tempo em que ambos já não existiremos e nunca mais voltaremos a existir.
Enquanto ele falava, Spatalé repunha azeite nas candeias. Eu** acariciava-lhe com o dedo as costas da mão, que tremia.

Pascal Quignard, As Tábuas de Buxo de Apronenia Avitia (trad. Ernesto Sampaio), Livros Cotovia.

* Spurius Possidius Barca, o segundo marido de Apronenia Avitia, encontrava-se acamado devido, possivelmente, a uma intoxicação alimentar.
** Eu (Apronenia Avitia). Apronenia Avitia, uma patrícia romana do final do século IV, escreveu uma espécie de diário (ou de agenda) sobre umas tabuinhas de buxo. Aí anotou contas, encomendas, perfumes, peças raras, preferências e aversões quanto a cheiros, comidas e prazeres, sonhos, pesadelos, reflexões, ditos jocosos ou não, recordações, etc.

22/06/08

As Realidades (Fábula)

Era uma vez uma realidade
com as suas ovelhas de lã real
a filha do rei passou por ali
E as ovelhas baliam que linda que está
a re a re a realidade.

Na noite era uma vez
uma realidade que sofria de insónia
Então chegava a madrinha fada
e realmente levava-a pela mão
a re a re a realidade.

No trono havia uma vez,
um velho rei que se aborrecia
e pela noite perdia o seu manto
e por rainha puseram-lhe ao lado
a re a re a realidade.

CAUDA: dade dade a reali
dade dade a realidade
A real a real
idade idade dá a reali
ali
a re a realidade
era uma vez a REALIDADE.


Louis Aragon


Franco Fortini, “o movimento surrealista”, trad. António Ramos Rosa, presença

02/06/08

vento e contravento, contravento e vento

"Mas a cena das duas pessoas a entrar no táxi e a satisfação que me deu fizera-me também perguntar se há dois sexos no espírito que correspondam aos dois sexos no corpo e se eles também necessitam de estar unidos para alcançarem uma plena satisfação e felicidade. E comecei, diletantemente, a esboçar a teoria de que em cada um de nós actuam duas forças, uma masculina e uma feminina; e no espírito do homem predomine o homem sobre a mulher, e no da mulher predomine a mulher sobre o homem. O estado normal e confortável da existência é aquele em que os dois vivem juntos em harmonia, cooperando espiritualmente. Se um é homem, a sua parte feminina interior deve ter um significado; e uma mulher deve também ter uma relação com o homem que existe nela. Coleridge talvez se referisse a isto quando disse que um grande espírito é andrógino. É no momento em que toda esta fusão ocorre que o espírito é totalmente fecundado e utiliza todas as suas faculdades. Talvez um espírito que seja puramente masculino não possa criar mais do que cria um espírito puramente feminino, pensei."
Virginia Woolf, "um quarto só para si", trad. Maria de Lourdes Guimarães, relógio d'água

motivo

"- ...por que é que tu dormiste com Pola?
- Por uma questão de perfumes - disse Oliveira, sentando-se no parapeito à beira da água. - Pareceu-me que cheirava ao cantar dos cantares, a canela, a mirra, essas coisas. E além disso era verdade."

Julio Cortázar, "Rauyela", trad. Alberto Simões, cavalo de ferro