28/05/08

Não compreendem nada

Entrei no barbeiro e disse - calmamente:
«Tenha a amabilidade, penteie-me as orelhas.»
Num repente o barbeiro pelado virou conífera eriçada,
a sua cara alongou-se como uma pêra.
«Ele é tolo!
Anormal!» -
e as palavras foram-se aos saltos.
O insulto ressaltava de ganido em ganido,
e lon-on-ongamente
uma espécie de cabeça fez troça,
extraída da multidão, como um velho rabanete.

Vladimir Maiakovski, "33 poesias", trad. Adolfo Luxúria Canibal, quasi

25/05/08

Da floresta...

"O meu nome é Marie e venho do Emental [...]. Trabalhei muito, porque sou forte. Tudo o que via e ouvia depressa me pareceu frio, estranho e pequeno. Nunca compreendi aquilo a que os outros chamam vida. As pequenas lágrimas e as pequenas risadas dos outros pareciam-me cada vez mais e mais estranhas, mais e mais incompreensíveis. Nao participava nas suas alegrias precipitadas, não percebia os seus sofrimentos. Sempre fui calma e contida. Nunca me senti assustada ou inquieta. Nunca tive medo de nada. As pessoas começaram a evitar-me como se eu fosse um fantasma; mas eu nunca perdi a calma, e nunca a perderei. Aqui na floresta sinto-me bem. Não gosto de pessoas. [...] Nunca quis ferir ninguém com a minha maneira de ser. Nasci assim, mas as pessoas julgam sempre que somos o que somos por intenção nossa. Mas isso não me inquieta muito, e hoje, que estás comigo, não me inquieta mesmo nada. És bom [...] e confias em mim. És tranquilo e não tens medo de mim."

Robert Walser, Histórias de amor, Relógio d' Água (Trad. Isabel Castro Silva)

10/05/08

Fatalidade

Francisco de Goya y Lucientes, Perro semihundido

Esta pintura decorava uma das paredes da casa de Goya (conhecida como "La quinta del sordo"). A cabeça de um cão surge no meio de uma mancha escura e olha para algo ou alguém que está fora da composição. É considerada uma das mais enigmáticas das "Pinturas Negras".


Por que escrevo?

Escrevo por não ter nada a fazer no mundo: sobrei e não há lugar para mim na terra dos homens. Escrevo porque sou um desesperado e estou cansado, não suporto mais a rotina de me ser e se não fosse a sempre novidade que é escrever, eu me morreria simbolicamente todos os dias. Mas preparado estou para sair discretamente pela porta dos fundos. Experimentei quase tudo, inclusive a paixão e o seu desespero. E agora só queria ter o que eu tivesse sido e não fui.
Clarice Lispector, A Hora da Estrela, Relógio D'Água

03/05/08