26/04/09

Gosto de me deitar
sem sono
para ficar
a lembrar-me
das coisas boas
deitada
dentro da cama
às escuras
de olhos fechados
abraçada a mim


Adília Lopes, "Florbela Espanca Espanca", Mariposa Azual

Gostaria

Gostaria
Gostaria
De escrever grande poesia
E as pessoas
Pôr-me-iam
Muitos louros na cabeça
Mas acontece
Que não gosto
Tanto assim de literatura
E que a vida me procura
E penso de mais nas pessoas
E nem sempre me apetece
Escrever coisas à toa.


Boris Vian, "cantilenas em geleia", trad. Margarida Vale de Gato, Relógio d'Água

18/04/09

Olha. A lua e as folhas escuras.

#
- Que disseste?
- Não disse nada.
- Não disseste nada. Não. Mas voltaste ao mesmo.
- Ao mesmo? – disse Mark.
- Voltaste ao mesmo.
- São quatro horas. Estou cansado.
- O que fazes quando estás cansado, vais-te deitar?
- Exacto.
- Dormes como uma pedra.
- Claro.
- Que fazes quando acordas?
- Passo o dia a andar.
- Olhas para onde vais?
- Vou onde for.
- Gostava de te perguntar uma coisa – disse Len.
- Sem dúvida.
- Estás preparado para responder a uma pergunta?
- Não.
- Mas dizes que não fazes perguntas. Se não respondes e não perguntas, que é que fazes?
- Passo o dia a andar.
- E dormes como uma pedra.
- Exacto.
- Que fazes durante o dia quando não estás a andar?
- É essa a pergunta?
- Hã?
- Que pergunta?
- Continua.
- Não é a pergunta que te ia fazer.
- E qual é?
- É outra coisa.
- É tudo outra coisa.
- Vá, deixa-te disso.
- Está bem. Continua – disse Mark.
Len levantou-se.
- Que queres dizer com continua? – disse ele. – Fiz-te uma pergunta e tu não respondeste.
- E qual era a pergunta?
- O que fazes durante o dia quando não estás a andar?
- Descanso.
- Onde é que encontras sítio para descansar?
- Aqui e ali.
- Por mútuo consentimento?
- Invariavelmente.
- Mas não és exigente?
- Sou, sou exigente.


##
- Diz-me, cá.
- Sim?
- És capaz de correr na neve sem deixar pegadas?
- Acho que sim.
- Deves ser capaz disso, eu sei.
- Acho que conseguia.
- Tens a certeza?
- Achas que não conseguia?
- Acho que conseguias.
- Desde o princípio que o sabias.
- Soube-o desde o princípio – disse ele. – Está aí nos teus olhos.
- Sempre aí esteve?
- Sempre. E no teu corpo.
- Esteve sempre no meu corpo?
- Sim, sempre.
- No teu corpo também - disse ela.
- A sério?
- Sim.
- O teu corpo – disse ele. – Sempre esteve em todo o teu corpo.
- Sempre.
- Nunca vi as tuas pernas, acima do joelho.
- Pois não.
- Levanta a saia.
- Hum?
- Levanta a saia.
- Assim?
- Sim. Continua.
- Assim?
- Deixa-a.
- Assim?


Harold Pinter, Os anões (trad. José Lima), Dom Quixote

02/04/09

abre as asas e fala...



Fala deixa cair uma palavra
Bons-dias dormi todo o Inverno e agora desperto
Fala
Uma piroga desliza em direcção à luz
Uma palavra veloz avança a toda a vela
O dia tem forma de rio
Em suas represas brilham as plumas de teus cantos
Doçura da água na erva adormecida
Água clara vogais para beber
Vogais para adornar uma fronte uns tornozelos
Fala
Atinge o cume dum momento de júbilo
E logo abre as asas e fala sem cessar
Passa um rosto esquecido
Passas tu própria com teu andar de vento num campo de milho
A infância com suas flechas e seu ídolo e sua figueira
Desata as amarras e passa com a torre e o jardim
Passa o futuro e o passado
Horas já vividas e horas por viver
Passam relâmpagos que levam no bico pedaços de tempo ainda vivos
E escrevem teu nome nas costas nuas do espelho!
Fala
Molha os lábios na água que da pedra inesgotavelmente brota
Submerge teus brancos braços na água grávida de profecias iminentes


Octavio Paz, Antologia Poética, in Manancial (org. e trad. Luís Pignatelli), Publicações Dom Quixote