27/04/10

Na lua temos tudo...

# Eu gostava da minha casa na lua, e coloquei-lhe uma lareira e um jardim no exterior (o que é que floresceria e cresceria na lua? Tenho de perguntar a Constance) e ia almoçar no meu jardim na lua. As coisas na lua eram muito brilhantes, e de cores estranhas; a minha pequena casa seria azul. (...) na lua falávamos uma língua suave, líquida e cantávamos à luz das estrelas, a olhar para o mundo seco e morto...
## Decidi que iria escolher três palavras poderosas, palavras de protecção forte, e desde que essas três palavras não fossem proferidas em voz alta nunca aconteceria nenhuma mudança. Escrevi a primeira palavra - melodia - na geleia de alperce da minha torrada com o cabo da colher, depois enfiei a torrada na boca e comi-a rapidamente. Estava um terço segura. (...)
Estava a decidir-me quanto à minha segunda palavra mágica, que achei que poderia muito bem ser Gloucester. Era forte, e achei que iria servir, embora o tio Julian pudesse meter na cabeça dizer qualquer coisa, e nenhuma palavra estava verdadeiramente a salvo quando o tio Julian estava a falar. (...)
Pensei em usar digitalis como a minha terceira palavra mágica, e por fim decidi-me por Pégaso. Tirei um copo do aparador, e disse muito claramente a palavra para o copo, depois enchi-o de água e bebi-a.
Shirley Jackson, Sempre Vivemos no Castelo (trad. Maria João Freire de Andrade), cavalo de ferro, 2010

10/04/10

... como os raios de uma roda convergem no eixo

# O tipo era mesmo estranho. As pessoas sentiam-se tentadas a fitá-lo mesmo antes de saberem que havia algo de diferente nele. O seu olhar levava a pensar que ele ouvia coisas que mais ninguém ouvia, e que sabia coisas que mais ninguém sabia. Não parecia humano.
## Continuou a balouçar-se na cadeira, para trás e para a frente. O que é que ele sabia? Nada. Para onde ia? Para lado nenhum. O que é que pretendia? Saber. O quê? O significado. Porquê? Porque o intrigava.
### Às vezes, pensava em Antonapoulos com imensa reverência, e outras vezes, com bastante orgulho, mas sempre com um amor livre de qualquer crítica ou julgamento, livre de toda a vontade. Quando sonhava, à noite, o rosto do amigo estava sempre presente, grande, sábio e meigo. E, quando estava acordado, sentia-se eternamente ligado a ele.

Carson McCullers, O Coração é um Caçador Solitário (trad. Marta Mendonça), Editorial Presença, 2010