20/09/10

historinha para pêzito

"Não sabemos quando aconteceu a história da boneca. Tinha encontrado uma menina que chorava e soluçava desesperadamente, porque tinha perdido a boneca. Kafka confortou-a: "Eu sei que a tua boneca anda em viagem; acabo de receber uma carta dela." A menina estava cheia de dúvidas: "Tem-na contigo?" - "Não, deixei-a em casa, mas amanhã trago-ta."Kafka voltou logo a casa para escrever a carta. Sentou-se à secretária e começou a compô-la como se tivesse de escrever um conto, libertando o grande jogo dickensiano de calor e fantasia que sempre o habitara. No dia seguinte, foi ao parque, onde a menina o esperava. Leu-lhe a carta em voz alta. Naquelas folhas - provavelmente tão intermináveis como as escritas a Felice - a boneca explicava com gentileza que estava farta de viver sempre na mesma família: queria mudar de ares, conhecer novas cidades, outros países, deixar a menina por uns tempos, embora lhe quisesse muito bem. Prometia escrever todos os dias com a descrição minuciosa das suas viagens. Assim, por algum tempo, à luz do candeeiro a petróleo, Kafka descreveu países que nunca tinha visitado, contou aventuras dramáticas mas de final feliz, e levou a boneca à escola, onde fez novas amigas. A boneca garantia sempre à menina que gostava dela, aludindo no entanto às complicações da sua vida e a outros deveres e interesses. Passados poucos dias, a menina já tinha esquecido a perda e só a ficção lhe interessava. O jogo durou pelo menos três semanas. Kafka não sabia como acabá-lo. Pensou, voltou a pensar, procurou muito tempo, discutiu com Dora, e finalmente decidiu casar a boneca. Descreveu o jovem noivo, as bodas, os preparativos de casamento, a casa do casal. "Deves perceber", concluía a boneca, "que de futuro temos que renunciar a ver-nos".

Pietro Citati, "Kafka", Cotovia