09/01/10

É preciso ser-se realmente idiota para

Agora que penso nesse assunto, a idiotice deve ser isso: o poder entusiasmar-se a toda hora com qualquer coisa de que uma pessoa goste, sem que um desenhito numa parede tenha de se ver diminuído pela memória dos frescos de Giotto em Pádua. A idiotice deve ser uma espécie de presença ou de recomeço constante: agora gosto desta pedrinha amarela, agora gosto de "L'année dernière à Marienbad", agora gosto de ti, ratita, agora gosto dessa locomotora incrível a bufar na Gare de Lyon, agora gosto desse cartaz arrancado e sujo. Agora gosto, gosto tanto, agora sou eu, um eu reincidente, idiota perfeito na sua idiotice que não sabe que é idiota e desfruta perdido no seu prazer, até que a primeira frase inteligente o devolva à consciência da sua idiotice e o faça procurar apressadamente um cigarro com as suas mãos desajeitadas, olhando para o chão, compreendendo e às vezes aceitando porque um idiota também tem de viver, claro que até que outro pato ou outro cartaz, e assim sempre.
Julio Cortázar, A volta ao dia em 80 mundos (Trad. Alberto Simões), cavalo de ferro

04/01/10

descomplicar a arte

Goya
"Nos últimos tempos, quando Goya já estava acamado, o cão vinha para o pé dele e pousava a cabeça no colchão em sinal de veneração. E ele pintava-o como podia, não muito bem. Começaram a dizer que era a fase mais genial do Goya, coitado. Porque se via só aquela cabeça que parecia dum fantasma? Porque a cama era alta, à espanhola."
Agustina Bessa-Luís, "A ronda da noite", Guimarães