18/07/11

"Sou lunar de duas sombrias luas"

Eu não penso, nem me queixo, nem discuto,
nem durmo.
Não desejo nem sol, nem lua, nem mar,
nem barco.

Não penso no calor que faz entre estas
paredes,
nem como o jardim está verde;
e esse presente, que tanto desejei,
já não o espero.

Não me anima nem a manhã, nem o eléctrico
o seu tilintar alegre,
vivo sem ver o dia, esquecendo-me, do tempo,
o ano e a hora.

Sobre uma corda estragada,
eu danço – pobre dançarina.
Sou a sombra de uma sombra. Sou lunar
de duas sombrias luas.

Marina Tsvétaïeva, in Anna Akhematova, Marina Tsvétaïeva, E cantou como canta a tempestade (trad. António Mega Ferreira), Selecção de poemas de Maria Medeiros, Ass+irio & Alvim, 2007



__________________________________

No escritório

A lua observa-nos do lado de fora,
e repara em mim, pobre empregado,
a desfalecer sob o olhar implacável
do chefe.
Atrapalhado, coço o pescoço.
Nunca conheci um sol perdurável
em toda a minha vida.
A privação é a minha sina:
coçar o pescoço
sob o olhar do chefe.

A lua é a ferida da noite
e todas as estrelas são gotas de sangue.
A felicidade permanece muito longe de mim,
por isso a minha natureza é modesta.
A lua é a ferida da noite.


Robert Walser (Trad. Rui Manuel Amaral, com base na versão em castelhano de Matilde Sánchez e Guillermo Piro, editada no nº 61 do Diario de Poesía), retirado d' aqui.

17/07/11

cheiros que passam ao lado

"Este é o melhor cheiro do mundo, o da palha remexida, dos corpos sob a manta, dos bois que ruminam na manjedoura, o cheiro do frio que entra pelas frinchas do palheiro, talvez o cheiro da lua, toda a gente sabe que a noite tem outro cheiro quando faz luar, até um cego, incapaz de distinguir a noite do dia, dirá, Está luar, pensa-se que foi Santa Luzia a fazer o milagre e afinal é só uma questão de fungar, Sim senhores, que lindo o luar desta noite.

José Saramago, "Memorial do Convento"

09/07/11

“Há uns tempos li nos jornais que um grupo de professores encontrou por acaso um inquérito que foi enviado nos anos trinta a um certo número de escolas de todo o país. Incluía um questionário sobre quais os problemas mais graves que aconteciam nas escolas. E encontraram também os formulários de respostas, que tinham sido preenchidos e devolvidos dos quatro cantos do país. E os problemas mais graves que os professores apontavam eram coisas como conversar nas aulas e correr pelos corredores. Mascar pastilha elástica. Copiar os trabalhos de casa. Coisas desse género. Então eles policopiaram uma data de exemplares e enviaram-nos para as mesmas escolas. Passados quarenta anos. Bom, algum tempo depois receberam as respostas. Violações, fogo posto, homicídio. Drogas. Suicídios. E eu ponho-me a pensar nisto. Porque muitas das vezes que eu digo que o mundo está a ir direitinho para o Inferno ou alguma coisa do género, as pessoas limitam-se a fazer-me um sorriso e dizem-me que eu estou a ficar velho. Que este é um dos sintomas. Mas cá no meu entender, se alguém não vê a diferença entre violar e assassinar pessoas e mascar pastilha elástica é porque tem um problema muito mais grave do que o meu. Quarenta anos também não é assim tanto tempo. Talvez os próximos quarenta anos façam acordar algumas pessoas da anestesia em que caíram. Se não for demasiado tarde.”

Cormac Mccarthy, "Este país não é para velhos", relógio d'água

06/07/11

E isto basta...

# Vim ao mundo a tantos de tal, fui educado em tal sítio, fui para a escola como qualquer um, sou isto e aquilo, chamo-me fulano de tal e não penso muito. Do ponto de vista do género sou do sexo masculino, do ponto de vista do estado sou um bom cidadão e do ponto de vista social pertenço à melhor sociedade. Sou um membro impecável, pacato e amável da sociedade humana, um dos chamados bons cidadãos, gosto de beber o meu copo de cerveja sobriamente, e não penso muito. Assim, não é de espantar que de preferência coma bem e também não é de espantar que as ideias não se aproximem de mim. O pensamento arguto é-me completamente alheio.

## Não esforço particularmente a cabeça, deixo isso às outras pessoas. Quem esforça a cabeça torna-se odiado. Quem pensa muito tem fama de ser incómodo. Já Júlio César apontava o dedo grosso ao Cássio, esquelético e de olhos encovados, a quem temia porque suspeitava que ele tinha ideias na cabeça. Um bom cidadão não pode inspirar medo e suspeita. Pensar muito não é o seu ofício. Quem pensa muito torna-se mal amado e é inteiramente desnecessário ser mal amado. Ressonar e dormir é melhor do que ser poeta ou pensar. Vim ao mundo a tantos de tal, fui à escola em tal sítio, leio ocasionalmente o jornal, tenho a profissão tal e tal, tento tantos e tantos anos, pareço ser um bom cidadão e gostar de comer bem.

Robert Walser, Basta in O Passeiro e Outras Histórias (trad. Fernanda Gil Costa), Granito – Editores e Livreiros, 2001

Ubiquidade...

Vi-a em todas as linhas dos livros que li, desde a primeira vez que aqui vim quando era um rapazinho rude cujo coração tanto magoou então. Vi-a em todas as paisagens que contemplei, no rio, nas velas dos navios, nos lameiros, nas nuvens, na luz, na escuridão, no vento, nos bosques, no mar, nas ruas.

Charles Dickens, Grandes Esperanças (trad. Carmen Gonzalez), Publicações Europa América, 1975