30/03/08

palavra com pólen*

"Pensando bem, também nós, seres humanos, somos em geral autênticas sinfonias de cheiros: cheiramos a pó de arroz, a perfume, a sabão para o rabo, a urina, a sexo, a suor, a pomada, a pornografia, a comida. É certo que, de um modo geral, a maioria de nós só cheira a gente, mas entre esses há os que cheiram a confiança, enquanto outros exalam ameaça."

Ingmar Bergman, "Lanterna Mágica", trad. Alexandre Pastor, caravela

*notazinha dispensável: este excerto esteve em risco de não ser transcrito devido ao nome da editora. foi a custo que o escrevi, precavendo-me dos prováveis espirros com uma mola a apertar-me as fossas nasais.
não que se perdesse grande coisa. ao invés, não que se ganhe alguma coisa. fica assim patente a hesitação do modesto e ridículo transcritor. dita a nota, passe-se ao largo da explicação sobre a dificuldade da escrita de tal palavra. tu lá a entenderás, "pois sim"?

discurso de Thomas Bernhard

Senhor Ministro

Dogníssima assistência

Não há nada a exaltar, nada a condenar, nada a acusar, mas há muitas coisas risíveis, tudo é risível quando se pensa na morte.
Atravessa-se a vida, recebem-se impressões, não se recebem impressões, atravessa-se a cena, tudo é intercambiável, recebe-se uma formação mais ou menos boa no armazém de acessórios: grande erro! Percebe-se: um povo que não suspeita de nada, um país formoso - o dos pais mortos ou conscienciosamente sem consciência, dos homens com a simplicidade e a baixeza, a pobreza das suas necessidades.
Tudo é pré-história altamente filosófica e insuportável.
Os séculos são pobres de espírito, o demoníaco em nós é a prisão perpétua do país dos pais onde as componentes idiotia e brutalidade mais intransigente se tornaram quotidiana necessidade. O estado é uma estrutura permanentemente condenada ao fracasso, o povo uma estrutura sempre condenada à infância e à fraqueza de espírito. A vida é o desespero em que se apoiam as filosofias, em que tudo, finalmente, está prometido à demência.
Somos austríacos, somos apáticos, somos a vida como indiferença, vulgarmente compartilhada, perante a vida; somos no processo da natureza, a loucura das grandezas, o sentido da loucura das grandezas como futuro.
Não há nada a dizer, a não ser que somos lamentáveis, sucumbimos por imaginação a uma espécie de monotonia filosófica-económica-mecânica.
Instrumentos da decadência, criaturas da agonia, tudo se torna claro para nós, não compreendemos nada. Povoamos um traumatismo, temos medo, temos todo o direito a ter medo, e em última análise avistamos já, por muito indiferente que as suas formas nos apareçam, os gigantes da angústia.
Aquilo que pensamos já foi pensado, o que sentimos é caótico, o que somos é obscuro.
Não há que ter vergonha: não somos nada e só merecemos o caos.
Muito obrigado.

Thomas Bernhard, "Trevas", trad. Ernesto Sampaio, Hiena

26/03/08

Bernhard numa das suas pessoas ou o falajar de um exagerado lúcido

"Cortar as orelhas a todas as mulheres grávidas seria uma boa ideia. Eu disse isso? Bem, disse-o porque as pessoas, quando julgam que põem crianças no mundo, cometem um grande erro. Engendram um merceeiro ou um criminoso de guerra todo suado, espantoso, pançudo, e é isto que põem no mundo, não crianças. Dizem que vão ter um bébé, mas na realidade o que vão ter é um octogenário que se mija e baba todo, cheira mal, é cego e a quem a gota não deixa dar um passo. Põem no mundo desgraçados, mas a esses não os vêem, para que a natureza possa perpetuar-se, e a mesma estrumeira prossiga até ao infinito."

Thomas Bernhard, "Trevas", trad. Ernesto Sampaio, Hiena

Gritar



"O panarício produz um sofrimento atroz. Mas o que mais me fazia sofrer era não poder gritar. Pois eu estava num hotel. A noite acabava de descer, e o meu quarto ficava entalado entre outros dois onde pessoas dormiam.
Então, comecei a tirar do crânio grandes tambores, cobres, e um instrumento que ressoava mais que um órgão. E aproveitando a força prodigiosa que a febre me dava, organizei uma orquestra ensurdecedora. Tremia tudo com as vibrações.
Depois, tendo enfim a certeza de que naquele tumulto a minha voz não se ouviria, pus-me a urrar, a urrar horas a fio, e consegui a pouco e pouco aliviar-me."

Henri Michaux, "As Minhas Propriedades", trad. José Carlos González, Fenda

13/03/08

Sem título

Grete Stern, Sem título, 1949

01/03/08

Dualidades

" [...] Fá-la tímida e má o ter de viver duas vidas, uma de imaginação, outra de realidade. Por isso tem o olhar desvairado para dentro, de quem segue um sonho e anda neste mundo por acaso."

Raul Brandão, A Morte do Palhaço e o Mistério da Árvore, Relógio D’ Água, 2005

Words you used to say - Dean & Britta

pirilampos

"Não só os sentimentos criam palavras, também as palavras criam sentimentos. (...) São a vida e quase toda a nossa vida - a razão e a essência desta barafunda."

Raul Brandão, "Húmus"