31/08/08

kibbutz... ki-bbu-tz

Estava menos frio junto ao Sena do que nas ruas. Oliveira subiu a gola da canadiana e foi contemplar o rio. Como não era dos que se atiram, procurou uma ponte para se abrigar debaixo dela e pensar no kibbutz por um bocado. Já há algum tempo que a ideia do kibbutz o assaltava, um kibbutz do desejo. “É engraçado como uma frase aparece assim de repente e não tem qualquer sentido, um kibbutz do desejo. Porém, depois da terceira vez que se repete começa a clarificar-se lentamente, e de um momento para o outro sente-se que não se trata de uma frase absurda […] é um resumo até bastante hermético de andar às voltas por aí, de deambulação em deambulação. […]”

Julio Cortázar, O Jogo do Mundo (Rayuela), trad. Alberto Simões, cavalo de ferro

28/08/08

Não importa com quem

Não importa com quem.
Não importa porquê.
Não importa para quê.
Importa que sejas de novo o fruto sadio desta longa demora
com lábios nascentes nos olhos de outrora.
Importa que a nudez volte pura outra vez.
Não importa porquê!

Amélia Vieira, Fim, cavalo de ferro

Encontro

Algures sobre o rosto da terra (outra carta-postal)

Encantei-me com as nuvens, como se fossem calmas
locuções de um pensamento aberto. No vazio de tudo
eram frontes do universo deslumbrantes.
Em silêncio vi-as deslizar num gozo obscuro
e luminoso, tão suave na visão que se dilata.
[...]
António Ramos Rosa, Nuvens, in Antologia Poética, Publicações Dom Quixote

27/08/08

Dignidade profissional

Eu sou um carácter forte!
Sei dominar-me.
Não o deixava transparecer, mas estavam em jogo o trabalho de longos anos, o reconhecimento do meu talento, todo o meu futuro.
‒ Sou um artista imitador ‒ disse.
‒ O que é que sabe? ‒ perguntou o director.
‒ Imito o canto dos pássaros.
‒ Infelizmente ‒ fez um gesto de renúncia com a mão ‒, isso já passou de moda.
‒ Como? O arrulhar da rola? O chilrear do milheiro nos caniçais? O gorjeio da codorniz? O grito da gaivota? O cantarolar da cotovia?
‒ Passou ‒ disse o director aborrecido.
Aquilo magoou-me. Mas penso que não o mostrei.
‒ Adeus ‒ disse eu com cortesia, e saí a voar pela janela aberta.

István Örkény, Histórias de 1 minuto, vol. 1 (trad. Piroska Felkai), cavalo de ferro

21/08/08

fantasia e realidade

Edward Hopper, Night on the El Train, 1918 (British Museum - exposição temporária)

azul-sonho

Pablo Picasso, Child with a Dove, 1901 (The National Gallery)

01/08/08

Peixes prisioneiros

“Eu achava que a lama me fora dada para gozar as belezas do mundo, a luz do luar na alaranjada crista de uma nuvem e a gota de orvalho que estremece em cima de uma rosa. Mas enquanto fui criança, pensei sempre que a vida me reservava um acontecimento sublime e belo. Mas à medida que analisava a vida dos outros homens, descobri que viviam aborrecidos, como se vivessem num país onde chove sempre, onde os raios da chuva lhes deixaram no fundo das pupilas tabiques de água que lhes deformavam a visão das coisas. E compreendi que as almas se moviam na terra como os peixes prisioneiros num aquário. Do outro lado das esverdeadas paredes de vidro estava a bela vida musical e altíssima e onde tudo seria distinto, forte e múltiplo e onde os novos seres de uma criação mais perfeita, com os seus belos corpos, saltariam numa atmosfera elástica. Nessa altura dizia-me: “É inútil, tenho de fugir da terra”.

Roberto Arlt, Os sete loucos, (Trad. Rui Lagartinho e Sofia Castro Rodrigues), cavalo de ferro