30/10/08

Virá a morte e terá os teus olhos

Virá a morte e terá os teus olhos -
esta morte que nos acompanha
de manhã à noite, insone,
surda, como um velho remorso
ou um vício absurdo. Os teus olhos
serão uma palavra inútil,
um grito calado, um silêncio.
Assim os vês em cada manhã
quando sobre ti só te inclinas
ao espelho. Ó querida esperança,
nesse dia saberemos também nós
que és a vida e és o nada.

Para todos a morte tem um olhar.
Virá a morte e terá os teus olhos.
Será como largar um vício,
como ver ressurgir
no espelho um rosto morto,
como escutar lábios fechados.
Desceremos o remoinho mudos.

22 de Março de 1950


Cesare Pavese, "Trabalhar Cansa", trad. Carlos Leite, Cotovia

18/10/08

O vento levar-nos-á

Na minha noite

Na minha noite, infelizmente tão curta
o vento está prestes a encontrar-se com as folhas
das árvores
na minha noite, tão breve, e plena de uma angústia devastadora
ouve
ouves o sussurro das sombras?
esta felicidade é-me desconhecida
estou habituada ao desespero.

Ouves o sussurro das sombras?
ali, na noite, algo acontece
a lua é vermelha e ansiosa
e sobre este telhado
que a qualquer momento pode ruir
as nuvens, qual procissão de carpideiras
aguardam o nascimento da chuva.
Um segundo
depois nada
atrás desta janela a noite treme
e a terra pára de girar
atrás desta janela
qualquer coisa desconhecida inquieta-se comigo e contigo

Tu, verde dos pés à cabeça
coloca as tuas mãos, essas memórias
escaldantes,
nas minhas mãos amorosas
entrega os teus lábios ao toque
dos meus lábios amorosos
repletos do calor da vida
o vento levar-nos-á
o vento levar-nos-á.

Forough Farrokhzad (poema retirado daqui.)

11/10/08

o perfeito pulsar irregular das frases

"O velho dar e receber intergeracional do país de antanho, quando todos sabiam o que tinham a fazer e aceitavam as regras com toda a seriedade, o avançar e recuar aculturante com que todos nós havíamos crescido, a luta ritual pós-imigrante pelo sucesso acabando em algo de patológico no castelo do gentleman farmer, logo aí, do nosso supervulgar Sueco. Um tipo todo arrumadinho como um baralho de cartas e, ao fiam e ao cabo, as coisas a desenrolarem-se de uma maneira totalmente diferente. De modo algum preparado para o que lhe iria cair em cima. Como é que ele alguma vez podia, como toda aquela bondade cuidadosamente calibrada saber que a aposta de viver obedientemente era tão alta? Assume-se a obediência para fazer baixar a aposta. Uma bela vida. Uma bela casa. Dirige o negócio que nem uma maravilha. Gere muito bem a sua velhice. Estava realmente a viver a sua versão do paraíso. É assim que vivem as pessoas de sucesso. São bons cidadãos. Sentem-se com sorte. Sentem-se gratos. Deus sorri-lhes. Quando há problemas, adaptam-se. E de repente tudo muda e torna-se impossível. Já nada sorri a ninguém. E quem é, então, capaz de se adaptar? Aqui temos alguém que não está preparado para suportar uma vida medíocre, quanto mais o impossível! Mas quem é que está preparado para o impossível que vai acontecer? Quem está preparado para a tragédia e para a incompreensão do sofrimento? Ninguém. A tragédia do homem que não está preparado para a tragédia - é esta a tragédia de todos os homens."


Philip Roth, "Pastoral Americana", trad. Maria João Delgado e Luísa Feijó, D. Quixote

colheita de estrelas

"Periscianos entre a noite e a manhã caímos em espiral, desde sempre. Não existem leis, não, e também não há ritmo. Não há centro. Nem unidade, nem tempo nem espaço. O nosso raciocínio científico é um pobre instrumento de análise; uma rede de malhas cada vez mais fechadas que capta e amarra os termos inertes da nossa dialéctica; um filtro que extrai às palavras todo o espírito, toda a imagem, toda a força criadora, todo o conhecimento, que as isola, descasca, lava, purifica, despoja de toda a ligação, todo o grânulo, toda a escória que arrastavam com elas de nascença para chegar a circunscrever, definir uma coisa única logo metafísica, isto é, nada porque tudo se mantém, liga, salta «e não podemos definir um fio de palha sem desmontar o universo»."

Blaise Cendrars, "O Eubage", trad. Aníbal Fernandes, & etc

mmc

«Segundo o seu ponto de vista o que é que encerra uma maior quantidade de ciência: os livros ou o espírito?»
«Uma pergunta muito perspicaz para uma mulher!», pensei para comigo, apoiando-me no ponto de vista tão natural ao homem de que o espírito da mulher é essencialmente frívolo. E pensei um minuto antes de responder. «Se se refere a espíritos vivos, não julgo possível chegar a uma conclusão. Há tanta ciência escrita que ainda nenhum ser vivo a leu; e há tanta ciência devidamente estudada que ainda não foi escrita. Mas, se se refere a toda a raça humana, então julgo que os espíritos têm essa ciência, tudo o que está registado em livros, deve ter estado noutros tempos em qualquer espírito, compreende?»
«Não é o que acontece com uma das regras algébricas?», quis ela saber. «A álgebra também?», pensei com um espanto crescente. «Quero dizer, se considerarmos os pensamentos como factores, não podemos dizer que o menor múltiplo comum de todos os espíritos contém o que é comum a todos os livros, e não o contrário?»
«De certo que podemos!”, respondi deliciado com a explicação. «E que grande coisa seria», acrescentei num devaneio em voz alta, «se ao menos pudéssemos aplicar essa regra aos livros! Sabe que ao acharmos o menor múltiplo comum excluímos qualquer número onde quer que ele apareça excepto na expressão em que ele está elevado à sua mais alta potência. Deste modo teríamos de apagar todo o pensamento registado, excepto na frase onde está expresso com maior intensidade.»
Ela riu muito divertida. «Receio que alguns livros ficassem reduzidos a papel em branco!», disse.
«Ficariam. O espólio da maioria das bibliotecas ficaria extremamente reduzido. Mas imagine o que ganharia em qualidade!»
«Quando é que isso acontecerá?», perguntou impaciente. «Se isso ainda acontecer no meu tempo, julgo que vou deixar de ler, e esperar por isso!»
«Bem, talvez daqui a uns mil anos, pouco mais ou menos…»


Lewis Carrol, "Sylvie e Bruno", trad. Maria de Lourdes Guimarães, Relógio D'Água

06/10/08

Por certo a Minerva ao seu serviço não usava capacete e era canhota

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O Inverno parecia mais frio do que costumavam ser os Invernos e Margot procurava em redor qualquer coisa que pudesse pôr no prego: talvez o pôr-do-sol.
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- Tenho que ficar quieto durante um bocado e depois caminhar muito devagar para a praia luminosa da dor, para aquela onda azul, azul. Que encanto há no azul. Nunca soube o que era o azul azul. Que confusão é a vida. Agora sei tudo.
Vladimir Nabokov, Riso na Escuridão (Trad. Telma Costa), teorema

Alguns detritos periféricos

Embora desprezasse os deuses, incluindo o grande D,
O Iph adoptou alguns detritos periféricos
De visões místicas; e dava instruções
(Os óculos ambarinos para o eclipse da vida) -:
Não se deve entrar em pânico quando se passa a fantasma:
Deslizar, deslizar, escolher uma surdez branda e aportar,
Encontrar corpos sólidos e passar através deles
Ou deixar alguém circular através de nós.
Como localizar na noite, de um olhar,
Terra, a Bela, orbículo de jaspe.
Como não enlouquecer no espaço espiralado.
Precauções a tomar em caso
De reincarnação disforme: que fazer
Se subitamente se descobrir que se é
Um jovem e vulnerável sapo
Espapaçado no meio de uma estrada em movimento.
Ou um filhote de urso sob um pinheiro a arder
Ou uma traça do papel num evangelho revivido.

Vladimir Nabokov, Fogo Pálido (Trad. Telma Costa), teorema