15/11/09

A CAMADA DE POEIRA. EXUMO.

Edward Hopper, Lighthouse and buildings, Portland Head, Cape Elizabeth, Maine, 1927


Cheguei ao mar com uma impressão de medo nos sentidos. Uma voz dizia-me:

- A vida verdadeira é uma solitária repetição de gestos.

De entre os lamaçais e os diques, um vento frio trazia ainda os lamentos das aves com o inverno. Eu, reconhecendo a vasta mancha da morte no interior das mãos, apertei-a para que não me fugisse. Muitas vezes, ao repetir maquinalmente esse gesto, o desencanto devolvia-me uma alma improvável. Não cheguei nunca a transpor os limites que a dúvida me punha. Em inquietação, eu observava as transformações do mar. Nunca acreditei nos meus poemas. Sentado, a escrevê-los, roía-me a obsessão da vida.

Há anos, vendo amontoarem-se as minhas impressões e o meu terror, resolvi debruçar-me sobre mim, limitar o vocabulário a uma região precisa, os meus raciocínios a um mecanismo doente. Dei, um dia, por que me aproximava da abstracção final. Uma persuasão terrível prendeu-me ao impulso de sobreviver. Não cedi ao nada. Escrevi:

- O desejo de durar…

Cheguei a concluir que era tarde. De madrugada, o vento deixou de soprar. Uma calmaria desceu sobre a praia e o mar. Pensei que o silêncio me libertaria. Mas as lágrimas… a loucura…

Nuno Júdice, Obra Poética (1972 - 1985), Quetzal Editores

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