20/07/10

"Perto de Jerusalém vivia um camponês que tinha comprado um galo..."

O camponês saía e contemplava, vaidoso, o jovem galo. Ave insolente e vistosa, já que chegava às últimas consequências com as três galinhas depenadas. O galispo erguia a cabeça para ouvir o desafio de galos invisíveis e distantes naquele mundo desconhecido. Vozes de fantasma que misteriosamente lhe cantavam, saídas de um limbo. E respondia-lhes num desafio sonoro, impossível de intimidar.
– Um destes dias levanta voo – disse a mulher do camponês.
Atraíram-no, então, com milho, apanharam-no, e apesar de se debater quanto podia com asas e patas, à volta do esporão prenderam-lhe um cordel e amarraram a outra ponta ao poste que sustentava o alpendre de colmo onde o burro se abrigava.
Uma vez solto, o jovem galo afastou-se dos seres humanos com uma indignação emproada, andou a toda a extensão do cordel, deu à pata presa um esticão violento e durante um momento caiu, para se arrastar com fúria no chão de terra suja, perante o susto das miseráveis galinhas, e com uma guinada de revolta tornar a endireitar-se e a reflectir. O camponês e a mulher riram a bom rir, e o jovem galo ouviu-os. Uma premonitória obscura espécie de consciência fê-lo saber que tinha a pata presa.
Deixou de se emproar, de se eriçar e valorizar as penas. Taciturno percorria o espaço que a corda delimitava. […]
Mas era com penosa voracidade que agora engolia os alimentos; e com incomodado triunfo é que capturava as galinhas indigentes. A voz, sobretudo, perdera todo o ouro do timbre. Estava preso pela pata, e sabia-o. Corpo, alma, espírito presos por aquele fio.
No entanto, dentro de si tinha a vida implacavelmente intacta. A corda é que teria de ceder. Por isso uma manhã, pouco antes de nascer o dia despertou das sonolências, uma repentina onda de vigor permitiu-lhe um forte impulso de asas, e partiu a corda. De um salto e com um estranho guincho selvagem pôs-se na crista do muro, e daí soltou um canto sonoro e cortante. Tão sonoro que o camponês acordou.
Ao mesmo tempo, na mesma manhã e nessa mesma hora anterior ao alvorecer, um homem despertava do sono prolongado que o tinha amarrado. Acordava entorpecido e frio num buraco escavado na rocha. Todo aquele sono lhe enchera o corpo de dor, e ainda continuava cheio de dor. Não abriu os olhos, apesar de saber que estava acordado, e entorpecido, e frio, e rígido, e cheio de dor, e amarrado. Tinha no rosto ligaduras frias, e as pernas ligadas uma à outra. Só as mãos estavam livres.
Podia mexer-se, se quisesse e sabia-o. Mas, não queria. Quem quer regressar de entre os mortos?

D. H. Lawrence, O Homem Que Morreu (Trad. Aníbal Fernandes), Assírio & Alvim, 2004

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