30/08/09

Apolo e Dafne (1622-25),Gian Lorenzo Bernini
Galleria Borghese, Roma

Arrebol



Um raio
Fulgura
No espaço
Esparso,
De luz;
E trêmulo
E puro
Se aviva,
S’esquiva,
Rutila,
Seduz!
(...)

Gonçalves Dias, Tempestade

11/08/09

náufragos... (efémeros como o arco-íris)

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Olhou para o quadro. Talvez aquela tivesse sido a sua resposta – o como “tu” e “eu” e “ela” passam e desaparecem; nada permanece; tudo muda; mas não as palavras, não a pintura. Fosse como fosse, esta tela iria parar a um qualquer sótão, pensou; seria enrolada e escondida debaixo de um sofá; mas, mesmo assim, até mesmo aquele quadro era real. Talvez se pudesse dizer daquele esboço, não do verdadeiro quadro, mas sim do que este tentava ser, que “seria eterno”. Era isto que ia dizer, ou, caso as palavras soassem demasiado pomposas, mesmo para si própria, sugerir de forma muda. Foi então que, ao olhar para o quadro, se surpreendeu por não o conseguir ver. Tinha os olhos repletos de um líquido quente (a princípio não lhe ocorreu serem lágrimas) que, sem perturbar a firmeza característica dos lábios, fez que o ar se tornasse compacto e lhe começasse a rolar pelas faces. Possuía o perfeito controlo de si mesma - Oh, sim! – em todos os sentidos com excepção daquele. […] Voltou a dirigir-se a Augustus Carmichael. Que seria aquilo? Qual o seu significado? Seria natural as coisas terem mãos e agarrarem-nos?, poderia a lámina cortar?, o punho agarrar? Será que não havia segurança? Não haveria maneira de se saber de cor as voltas do mundo? Será que não havia qualquer tipo de guia ou de abrigo, sendo tudo um milagre, um saltar do ponto mais alto de uma torre para o vazio? Seria verdade que, até para os velhos, a vida fosse aquilo – algo de desconcertante, inesperado, desconhecido? Durante breves instantes, sentiu que ambos se tinham erguido, ali, no relvado, e exigido uma explicação para a brevidade da vida, para o facto de esta ser inexplicável.

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Segundo Cam, o pai lia como se estivesse a conduzir alguma coisa, a encaminhar um rebanho tresmalhado, ou a abrir caminho ao longo de um carreiro muito estreito; por vezes, andava depressa e a direito, forçando a passagem por entre o matagal, e por vezes dava a sensação de que um ramo ficara agarrado a ele, que um espinheiro o cegara, mas não era isso que o levaria a dar-se por vencido; e lá continuava ele, a virar as páginas umas a seguir às outras. E lá continuava ela a contar a si mesma uma história a respeito de como fugira de um navio prestes a afundar-se, pois, enquanto o pai ali estivesse, não havia dúvida de que se encontrava a salvo […]

Virginia Woolf, Rumo ao Farol (Trad. Lucília Rodrigues), livros de bolso – Europa-América

05/08/09

Sinais de um qualquer código nebuloso...

‒ Animula vagula blandula.

Desta vez o latim do imperador sai mais rouco, sem perder contudo a doçura dos ll, a música a que os aa abertos, no fim, e o som escuro e anterior dos uu dão não sei que tonalidade contrastada, quase misteriosa. Porque se trata dum mistério: a perturbação que estas palavras me provocam desde que as li a primeira vez e a frequência inesperada com que as lembro ou digo involuntariamente, sobretudo naqueles instantes em que me visita, o quê?, como hei-de eu chamar a este desespero manso, sentimento de pequenez e desamparo, ternura insidiosa pelas coisas, que é talvez a máscara da autopiedade, o gato escondido com o rabo de fora?

Carlos de Oliveira, O Aprendiz de Feiticeiro, Livraria Sá da Costa Editora

Uma questão de estilo

Mantenho-me de lado, incapaz de fazer alguma coisa para além de observar, é uma provação, mas não digo uma palavra. De qualquer maneira, a minha natureza é de estilo silencioso. Quando criança consideravam-me respeitadora; quando jovem chamavam-me discreta. Mais tarde, pensavam que tinha a sabedoria que só a maturidade traz. Hoje em dia o silêncio é visto como algo estranho […]

Toni Morrison, LOVE (Trad. Maria João Freire de Andrade), Dom Quixote