23/01/09

O lirismo do alfabeto

Sinto-me arrebatado pelas letras,
atacam-me, cegas, de noite,
invadem-me:
cercam-me durante o dia,
tomando-me de assalto os olhos,
arrancando-me o sono e projectando-o
da sombra para a luz,
da luz para a sombra, inexoravelmente.
Guerra sem fim e sem quartel,
mortal e alegre a cada instante.
Rimbaud deu cores às vogais,
mas cada letra - todo o alfabeto -
se expande numa cor, torna visível,
até quase pode tocar-se, o seu som.
Eis aqui a armada invicta,
as guardas avançadas da palavra,
torres maiúsculas,
fortes capitães, que em batalha contínua, entrelaçados,
provocam desde há séculos todas as comoções,
ligeiras ou profundas,
do ser, do pensamento.
Pintura, poesia, caligrafia e música
- folhas, estrelas, flores - ei-las aqui, num só ramo.
O alfabeto é tudo.
Na caligrafia, exaltada, ressoa cada coisa.
Dum extremo ao outro,
percorre o mundo o lirismo do alfabeto. Escutai.
Todas as letras cantam nas antenas.

Rafael Alberti (Trad. Albano Martins)

19/01/09

Ernesto Sabato, Daniel Mordzinski (foto retirada daqui)

náufragos exaustos

Quando somos sensíveis, quando os nossos poros não estão cobertos pelas capas implacáveis, a proximidade da presença humana sacode-nos, dá-nos alento, compreendemos que é sempre o outro que nos salva. […] Muitas vezes, somos incapazes de um genuíno encontro porque só reconhecemos os outros na medida em que definem o nosso ser e o nosso modo de sentir, ou porque são propícios aos nossos projectos. Não podemos ficar num encontro porque estamos cheios de trabalho, de coisas para tratar, de ambições. E porque a magnitude da cidade nos supera. Então, o outro ser humano não nos chega, não o vemos. Está mais ao nosso alcance um desconhecido com quem falamos através do computador. Na rua, no trabalho, nos infinitos expedientes, sabemos – abstractamente – que estamos a lidar com seres humanos, mas, concretamente, tratamos os outros como se fossem servidores informáticos ou funcionais. Não vivemos esta relação de um modo afectivo, é como se tivéssemos uma capa de protecção contra os acontecimentos “desviantes” da atenção. Os outros incomodam-nos, fazem-nos perder tempo. O que deixa o homem espantosamente só, como se no meio de tantas pessoas, ou por isso mesmo, o autismo se propagasse.
Ernesto Sabato, Resistir (trad. Carlos Aboim de Brito), Dom Quixote

01/01/09

Vais à água?

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A tua casa, sendo o local onde lês, pode dizer-nos que lugar ocupam os livros na tua vida, se são uma defesa que pões à frente para manteres afastado o mundo exterior, um sonho em que mergulhas como numa droga, ou se são pontes que lanças para o exterior, para o mundo que te interessaa tanto que queres dilatar e multiplicar as suas dimensões através dos livros.
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Trazes o livro que estavas a ler no café e que estás impaciente por continuar, para depois poderes passar-lho, para comunicares de novo com ela através do canal aberto pelas palavras alheias, que justamente por serem pronunciadas por uma voz estranha, pela voz do silencioso ninguém feito de tinta e de espaçamentos tipográficos, podem tornar-se vossas, uma linguagem, um código entre vós, um meio de trocarem sinais e reconhecerem-se.
Italo Calvino, Se numa Noite de Inverno um Viajante (trad. José Colaço Barreiros), teorema