21/01/08

transcrição

"Assim eu vivo, agora: não sei dar troco ao trocar das falas, nem soltar palavras sem que toda a gente sinta que os meus dizeres recobrem outros, os que assustam. Assim o falar directo e verdadeiro se me coalhou, em grande parte por fraqueza de insuportáveis outros - tu também incluso, meu amor; sagrada que fui para apanhar com nojos, meus e alheios. Minha maturação progressivamente mensageira do que toda a gente quer esquecer - eu também inclusa, meu amor: o vacilar da Vida acometida. Assim promovida fui, a mensageira do a-esquecer pelas banais pessoas. Que esquecendo são tantas vezes apanhadas de surpresa; e logo caem, cairão como caíram outras. As multidões ceifadas: quem pudesse mostrar isso a todos.
(...)
Mas nos meus frágeis, quotidianos movimentos, sei sobretudo isto: o que é acordar (ou ser acometida em pleno dia), gemendo sem o mínimo dos sons. Bradando por socorro em línguas mudas, todo o viver toldado em agonia de fazer jorrar suor como de sangue. E isto dia e noite; e outra vez, mais outra outra vez. Assim prossigo, no horror. Sem alívio que não seja o adormentamento, deitada ou mesmo a pé, bamboleante. Cortando as dores com umas drogas que - sei isso - tudo agravarão passado o seu efeito. Mas drogas essas que interrompem o sofrer inominável de ser rasgada por feras em pleno estofo de um maple em sala burguesa, com conversa e riso à volta: a introdução na arte de alívio de momento: saber que pouco a pouco a minha carne contorcida se distenderá - durante um pouco. (O alívio de momento: quem não passou por isso, como pode saber seja o que for? Todos por isso passam, mas de leve, e fazem por esquecer). Mas eu, amor: isto não pode ter-me acontecido apenas por desleixo. Mas amor, meu amor, porque foi que viemos a nos abandonar uma ao outro; como é que eu e tu deixámos que entre nós se interpusesse esta aparência de abandono?"

Nuno Bragança, "directa", d. quixote

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