11/10/08

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«Segundo o seu ponto de vista o que é que encerra uma maior quantidade de ciência: os livros ou o espírito?»
«Uma pergunta muito perspicaz para uma mulher!», pensei para comigo, apoiando-me no ponto de vista tão natural ao homem de que o espírito da mulher é essencialmente frívolo. E pensei um minuto antes de responder. «Se se refere a espíritos vivos, não julgo possível chegar a uma conclusão. Há tanta ciência escrita que ainda nenhum ser vivo a leu; e há tanta ciência devidamente estudada que ainda não foi escrita. Mas, se se refere a toda a raça humana, então julgo que os espíritos têm essa ciência, tudo o que está registado em livros, deve ter estado noutros tempos em qualquer espírito, compreende?»
«Não é o que acontece com uma das regras algébricas?», quis ela saber. «A álgebra também?», pensei com um espanto crescente. «Quero dizer, se considerarmos os pensamentos como factores, não podemos dizer que o menor múltiplo comum de todos os espíritos contém o que é comum a todos os livros, e não o contrário?»
«De certo que podemos!”, respondi deliciado com a explicação. «E que grande coisa seria», acrescentei num devaneio em voz alta, «se ao menos pudéssemos aplicar essa regra aos livros! Sabe que ao acharmos o menor múltiplo comum excluímos qualquer número onde quer que ele apareça excepto na expressão em que ele está elevado à sua mais alta potência. Deste modo teríamos de apagar todo o pensamento registado, excepto na frase onde está expresso com maior intensidade.»
Ela riu muito divertida. «Receio que alguns livros ficassem reduzidos a papel em branco!», disse.
«Ficariam. O espólio da maioria das bibliotecas ficaria extremamente reduzido. Mas imagine o que ganharia em qualidade!»
«Quando é que isso acontecerá?», perguntou impaciente. «Se isso ainda acontecer no meu tempo, julgo que vou deixar de ler, e esperar por isso!»
«Bem, talvez daqui a uns mil anos, pouco mais ou menos…»


Lewis Carrol, "Sylvie e Bruno", trad. Maria de Lourdes Guimarães, Relógio D'Água

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