29/09/08

Do vento...

Edward Hopper, Evening Wind, 1921 (British Museum - exposição temporária)

21/09/08

Do não-onde

Um anjo à superfície do não-onde com o pé ligeiramente levantado

Avec le temps

Com o tempo
tudo passa
do possível ao improvável

Com o tempo
deshabitamos
as condições do corpo
a sua assinatura

Com o tempo
descobrimos o sentido fractal -
na face do Banquete
as coisas conhecidas
tornam-se sussurro

O futuro é um despiste amargo
um vértice truncado
que se esfuma

Divorciados do acaso
afastamo-nos calados

No deserto
surdamente gritamos

Ana Hatherly, Itinerários, quasi

17/09/08

SubLinhAdOs*

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“Em última análise”, escreveu Kafka em 1904 ao seu amigo Oskar PollaK, “parece-me que devíamos ler apenas livros que nos mordam e firam. Se o livro que estivermos a ler não nos desperta violentamente como uma pancada na cabeça, para que nos devemos dar ao trabalho de o ler, como tu dizes? Por Deus, seríamos igualmente felizes sem livros nenhuns; em caso de necessidade, podíamos nós próprios escrever livros que nos tornassem felizes. Do que precisamos é de livros que nos atinjam como a desgraça mais dolorosa, como a morte de alguém que amávamos mais do que a nós próprios, que nos façam sentir como se tivéssemos sido expulsos para o meio dos montes, longe de qualquer presença humana, como um suicídio. Um livro tem de ser a picareta para o mar gelado dentro de nós. É isso que penso.”

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No século XVIII, embora os quartos continuassem a não ser espaços de reclusão, ficar na cama a ler – em Paris, pelo menos – tornara-se suficientemente comum para justificar que São João Baptista de la Salle, o pedagogo e filantropo francês canonizado em 1900, chamasse a atenção para os perigos pecaminosos deste passatempo ocioso. “É completamente indecente e impróprio tagarelar, coscuvilhar ou foliar na cama” escreveu em As regras do Decoro na Civilidade Cristã, publicado em 1703. “Não imiteis certas pessoas que se entregam à leitura e outras actividades; não permaneçais na cama, a não ser que seja para dormir, e a vossa virtude muito aproveitará.”
Alberto Manguel, Uma História da Leitura (trad. Ana saldanha), Editorial Presença

* Falta a aba do chapéu do A, pois sim?


16/09/08

na medida em que tudo pode ser simbólico

"O Acanto (do grego " akantha "), não é apenas uma planta espinhosa de folhas muito longas, verdes e recortadas, também conhecida como "erva-gigante", oriunda dos terrenos húmidos e pedregosos do Sul da Europa, o acanto é algo poético que lembra a pureza de carácter, perfeição moral e trabalho honesto.
(...)
O simbolismo da folha do acanto, muito usada nas decorações antigas e medievais deriva, essencialmente, dos espinhos dessa planta.
Conta certa lenda, narrada por Vitrúvio, que o escultor Calímaco, no final do século V a. c., ao ornamentar um dos capitéis do túmulo de uma menina , se teria inspirado num ramalhete de folhas de acanto. Retém-se dessa lenda o facto de que, pelo menos originalmente e sobretudo na arquitectura funerária, o acanto era usado para indicar que as provações da vida e da morte, simbolizadas pelos espinhos da planta, haviam sido vencidas.
O acanto ornamentava os capitéis coríntios, os carros fúnebres e as vestimentas dos grandes homens, porque os arquitectos, os defuntos e os heróis haviam sido homens que souberam vencer as dificuldades de suas tarefas. Como de tudo que possui espinhos, fez-se igualmente do acanto o símbolo da terra virgem e da própria virgindade, que também significam uma outra espécie de triunfo. Aquele que tiver ornado por essa folha venceu a maldição bíblica: “O solo produzirá para ti espinhos e cardos” (Génesis, 3, 18). No sentido de que a provação vencida se transformou em glória."

Jean Chevalier, «Dicionário de Símbolos», editora José Olympio

respigado daqui

14/09/08

Um pouquinho sublime...

Neste ponto acaba o conto. Sobre o crepúsculo desenha-se o rosto do milionário e do vagabundo, e depois as estrelas, e depois o infinito. Um pouquinho sinistro, não é? Um pouquinho sublime e um pouquinho sinistro. Como em todo o amor louco, não é? Se ao infinito se acrescentar infinito, o resultado é infinito. Se se juntar o sublime com o sinistro, o resultado é sinistro, não é?

Roberto Bolaño, Os Detectives Selvagens (trad. Miranda das Neves), Teorema

11/09/08

Au-dessus-de-la-montagne...


Algures sobre a montanha

10/09/08

Nocturno de.

Martin Lewis, Spring Night, Greenwich Village (British Museum - exposição temporária)

07/09/08

Flor, perfume, relva, céu...

Devo dizer, para ser franca, que já várias vezes tinha acedido a sair com ele. Não para ir ao baile. Ele dizia que não gostava de dançar. Na realidade, não sabia. Mas não me impedia que o fizesse. Eu também não gostava por aí além de dançar. […] Preferia ir até ao campo com ele. Ora me levava a Saint-Germain, ora a Fontainebleau, ora à beira do Sena ou do Marne. Alugávamos um barco. Ele remava. Eu ficava sentada à sua frente sem dizer nada. Ele também não dizia palavra. Olhava para mim enquanto remava e de vez em quando sorria-me. Eu então também sorria para ele. À volta, tomávamos um “panaché”, com umas batatas fritas, numa tasquinha lá do sítio e voltávamos de comboio, ou numa camioneta à pinha, com os braços atafulhados de flores do campo. Flores que cheiravam bem. De regresso a Paris, quase me sentia asfixiar. Gostaria de ter lá ficado, em Athis-Mons ou em Gagny, uma semana inteira deitada na relva ao pé dele, a olhar para o céu.

Raymond Guérin, Jaquina (Trad. Luiza Neto Jorge), in A Pele Calejada, Assírio & Alvim

nada passa

"Gatsby acreditava na luz verde, no futuro orgástico que, ano após ano, recua diante dos nossos olhos. Nessa altura iludiu-o, mas não importa - amanhã correremos mais depressa, esticaremos mais os braços...E uma bela manhã...
Assim vamos persistindo, como barcos contra a corrente, incessantemente levados de volta ao passado."


Scott Fitzgerald, "o grande Gatsby", trad. Fernanda César, Europa-América

Recado

ouve-me
que o dia te seja limpo e
a cada esquina de luz possas recolher
alimento suficiente para a tua morte

vai até onde ninguém te possa falar
ou reconhecer - vai por esse campo
de crateras extintas - vai por essa porta
de água tão vasta quanto a noite

deixa a árvore das cassiopeias cobrir-te
e as loucas aveias que o ácido enferrujou
erguerem-se na vertigem do voo - deixa
que o outono traga os pássaros e as abelhas
para pernoitarem na doçura
do teu breve coração - ouve-me

que o dia te seja limpo
e para lá da pele constrói o arco de sal
a morada eterna - o mar por onde fugirá
o etéreo visitante desta noite

não esqueças o navio carregado de lumes
de desejos em poeira - não esqueças o ouro
o marfim - os sessenta comprimidos letais
ao pequeno-almoço


Al Berto, "vigílias", Assírio & Alvim