22/11/09

As folhas são azuis

O rei mimado está
Feliz e sem rival
E verte para mim
Cem gotas de água e sal
Aos saltos e pinotes
Percorre agora o chão
Mas pára p’ra lutar
À vista de um dragão
Batuques e tambores
Ilustram o combate sem dó
Alguém me afaga a lã
Me puxa num trenó
Me leva na manhã
Do sol-e-dó

Acordam os amores
No reino da paixão
São elfos e duendes que
Nos levam pela mão
As folhas são azuis
O sol vermelho está
A relva sua e diz que
A vida é um sofá p’ra gozar
São monstros de cordel
Histórias de encantar
No espelho de Babel
A festa não tem fim
Volteia agora o vento
E eu peço um gin

Mão Morta, O rei mimado

15/11/09

A CAMADA DE POEIRA. EXUMO.

Edward Hopper, Lighthouse and buildings, Portland Head, Cape Elizabeth, Maine, 1927


Cheguei ao mar com uma impressão de medo nos sentidos. Uma voz dizia-me:

- A vida verdadeira é uma solitária repetição de gestos.

De entre os lamaçais e os diques, um vento frio trazia ainda os lamentos das aves com o inverno. Eu, reconhecendo a vasta mancha da morte no interior das mãos, apertei-a para que não me fugisse. Muitas vezes, ao repetir maquinalmente esse gesto, o desencanto devolvia-me uma alma improvável. Não cheguei nunca a transpor os limites que a dúvida me punha. Em inquietação, eu observava as transformações do mar. Nunca acreditei nos meus poemas. Sentado, a escrevê-los, roía-me a obsessão da vida.

Há anos, vendo amontoarem-se as minhas impressões e o meu terror, resolvi debruçar-me sobre mim, limitar o vocabulário a uma região precisa, os meus raciocínios a um mecanismo doente. Dei, um dia, por que me aproximava da abstracção final. Uma persuasão terrível prendeu-me ao impulso de sobreviver. Não cedi ao nada. Escrevi:

- O desejo de durar…

Cheguei a concluir que era tarde. De madrugada, o vento deixou de soprar. Uma calmaria desceu sobre a praia e o mar. Pensei que o silêncio me libertaria. Mas as lágrimas… a loucura…

Nuno Júdice, Obra Poética (1972 - 1985), Quetzal Editores

08/11/09

Em que é que acreditas?

Nicoletta Ceccoli, treegirl

- Acreditas no amor? – perguntou Reiter.
– Não, francamente não – respondeu a rapariga.
– E na honestidade? – perguntou Reiter.
– Uf, menos do que no amor – disse a rapariga.
– Acreditas no pôr-do-sol – continuou Reiter –, nas noites estreladas, nos amanheceres diáfanos?
– Não, não, não – respondeu a rapariga com um gesto de manifesto nojo –, não acredito em nenhuma coisa ridícula.
– Tens razão – disse Reiter. – E nos livros?
– Menos ainda – disse a rapariga –, além disso na minha casa só há livros nazis, política nazi, história nazi, economia nazi, mitologia nazi, poesia nazi, romances nazis, obras de teatro nazis.
– Não fazia ideia de que os nazis tivessem escrito tanto – comentou Reiter.
– Tu, pelo que vejo, tens ideia de muito poucas coisas, Hans – comentou a rapariga –, a não ser de me beijar.
– É verdade – disse Reiter, que estava sempre disposto a admitir a sua ignorância.

Roberto Bolaño, 2666 (Trad. Cristina Rodriguez e Artur Guerra), Quetzal

07/11/09

What's in a name?

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‒ Chamo-me Alice, mas…
‒ É um nome bastante estúpido! ‒ interrompeu Humpty Dumpty, olhando-a pela primeira vez. ‒ Mas o que é que significa?
‒ Um nome tem de significar alguma coisa? ‒ perguntou Alice, incrédula.
‒ É claro que tem ‒ disse Humpty Dumpty com uma curta risada. ‒ O meu nome significa a forma que eu tenho… e é muito elegante, diga-se de passagem. Com um nome como o teu, quase que podias ter qualquer forma. […]

‒ Quando eu emprego uma palavra, ela quer dizer exactamente o que me apetecer… nem mais nem menos – retorquiu Humpty Dumpty, num tom sobranceiro.
‒ A questão é se você pode fazer com que as palavras queiram dizer tantas coisas diferentes.
‒ A questão é quem é que tem o poder … é tudo.
Lewis Carroll, Alice Do Outro Lado Do Espelho, (Trad. Margarida Vale de Gato), Biblioteca Editores Independentes

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Há pessoas que acreditam que o nome é o destino. Eu não acredito que isso seja verdade. Mas se fosse, ao escolher aquele nome, de alguma maneira Kelly tinha dado o primeiro passo para entrar na invisibilidade, para entrar no pesadelo. Você acredita que o nome é o destino? Não, disse Sérgio, e é melhor que eu não acredite nisso. Porquê?, suspirou, sem curiosidade a deputada. Tenho um nome vulgar, disse Sérgio, olhando para os óculos escuros da sua anfitriã. […] Quer que lhe diga uma coisa? Todos os nomes são vulgares, são banais. Chamar-se Kelly ou chamar-se Luz María no fundo é a mesma coisa. Todos os nomes se desvanecem. Deviam ensinar isso às crianças desde a primária. Mas temos medo de o fazer.
Roberto Bolaño, 2666 (Trad. Cristina Rodriguez e Artur Guerra), Quetzal