27/06/08

Litania

[...] Spurius*, triste, de olhar fixo, com as mãos a tremer, gagueja:
– Houve um tempo em que eu não existia e houve um tempo em que tu não existias. Haverá talvez um tempo em que eu deixe de existir e tu existas, ou talvez um tempo em que tu não existas e eu exista. Serão sem dúvida os tempos mais tristes. Depois haverá um tempo em que ambos já não existiremos e nunca mais voltaremos a existir.
Enquanto ele falava, Spatalé repunha azeite nas candeias. Eu** acariciava-lhe com o dedo as costas da mão, que tremia.

Pascal Quignard, As Tábuas de Buxo de Apronenia Avitia (trad. Ernesto Sampaio), Livros Cotovia.

* Spurius Possidius Barca, o segundo marido de Apronenia Avitia, encontrava-se acamado devido, possivelmente, a uma intoxicação alimentar.
** Eu (Apronenia Avitia). Apronenia Avitia, uma patrícia romana do final do século IV, escreveu uma espécie de diário (ou de agenda) sobre umas tabuinhas de buxo. Aí anotou contas, encomendas, perfumes, peças raras, preferências e aversões quanto a cheiros, comidas e prazeres, sonhos, pesadelos, reflexões, ditos jocosos ou não, recordações, etc.

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