28/11/08
25/11/08
respirar e ver
Cesare Pavese, vocação, in férias de agosto (Trad. Ana Hatherly), quasi
23/11/08
Transparências
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Posso decorar uma página inteira da lista telefónica em três minutos exactos, mas sou incapaz de me lembrar do meu próprio número de telefone. Posso compor páginas de poesia tão estranha e nova como tu, ou como qualquer coisa que alguém possa escrever daqui a trezentos anos, mas nunca publiquei um verso sequer […] Posso levitar uma polegada e manter-me assim por dez segundos, mas não consigo trepar a uma macieira. Possuo uma licenciatura em Filosofia, mas não aprendi alemão. Apaixonei-me por ti, mas não farei nada quanto a isso. Em resumo, sou um génio absoluto.
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Se, como acontecia às vezes, nas horas mais cinzentas, sem a mais remota intenção sexual, ele interrompia a sua leitura, para ir até ao quarto dela avançando sobre os joelhos e os cotovelos, como uma preguiça extática, indescritível, inarbórea, uivando a sua adoração, a fria Armande dir-lhe-ia que se levantasse e deixasse de se armar em parvo. Os nomes mais ardentes que conseguia imaginar – minha princesa, minha querida, meu anjo, meu bichinho, minha fera felina – só a exasperavam. “Mas por que razão”- perguntava ela, “não consegues falar comigo de uma forma humana, natural, como um cavalheiro fala com uma senhora, por que tens de inventar estas palhaçadas, por que não consegues ser sério e simples e credível?”
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Viu um 313 muito preto sobre uma porta muito branca e lembrou-se instantaneamente de como tinha dito a Armande (que lhe prometera visitá-lo e não quis que a anunciassem): "Mnemonicamente deve ser imaginado como três homenzinhos de perfil, um preso que passa com um guarda que vai à frente e outro guarda atrás." Armande replicara que isso era muito complicado para ela e que o anotaria simplesemente na agendinha que trazia na carteira.
Vladimir Nabokov, Transparências (Trad. Margarida Santiago), Teorema
22/11/08
porcos-espinhos prateados
Diante da maior parte das pessoas, da maior parte dos lugares, da maior parte das situações, da maior parte das palavras, o ser de Djuna, de dezasseis anos, fechava-se hermeticamente no silêncio. As sentinelas eriçavam-se: vem aí alguém! E todas as passagens que conduziam ao seu interior se fechavam.
Hoje, enquanto mulher adulta, conseguia perceber que essas sentinelas não se tinham limitado a defendê-la – tinham construído verdadeiros fortes sob essa máscara de branda timidez, fortes com buracos camuflados que escondiam armas construídas pelo medo.
Anaïs Nin, os Filhos do Albatroz (Trad. Tânia Ganho), Bico de Pena
12/11/08
a lua era feita de açúcar
Al Berto, O Medo, Assírio & Alvim
10/11/08
Lá e Não-aqui e Às-vezes
nos são oferecidas. Quando
para ti olhei ‒ foi quando? ‒ estava
lá fora nesses
outros mundos.
Oh, estes caminhos, galácticos,
Oh, esta hora que nos
trouxe as noites lançando-as
na carga dos nossos nomes. Não
é verdade, bem o sei,
que tenhamos vivido, passou,
cego, apenas um sopro entre
Lá e Não-aqui e Às-vezes,
como um cometa, um olho passava vibrante
em busca de fogos extintos, nos desfiladeiros,
no lugar do lume a apagar-se estava
o tempo num esplendor de tetas,
e por ele acima e abaixo já
crescia e passava o que
é ou foi ou há-de ser ‒,
eu sei,
eu sei e tu sabes, nós sabíamos,
não sabíamos, nós
afinal estávamos aqui e não lá
e às vezes, quando
entre nós só havia o Nada, o nosso
encontro era perfeito.
Paul Celan, Sete Rosas Mais Tarde (Trad. João Barrento e Y.K. Centeno), Livros Cotovia