23/11/08

Transparências

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A cama era um pesadelo. A “casa de banho” tinha um bidé (suficientemente grande para que nele se instalasse um elefante de circo, sentado), mas não tinha banheira.

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Posso decorar uma página inteira da lista telefónica em três minutos exactos, mas sou incapaz de me lembrar do meu próprio número de telefone. Posso compor páginas de poesia tão estranha e nova como tu, ou como qualquer coisa que alguém possa escrever daqui a trezentos anos, mas nunca publiquei um verso sequer […] Posso levitar uma polegada e manter-me assim por dez segundos, mas não consigo trepar a uma macieira. Possuo uma licenciatura em Filosofia, mas não aprendi alemão. Apaixonei-me por ti, mas não farei nada quanto a isso. Em resumo, sou um génio absoluto.

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Se, como acontecia às vezes, nas horas mais cinzentas, sem a mais remota intenção sexual, ele interrompia a sua leitura, para ir até ao quarto dela avançando sobre os joelhos e os cotovelos, como uma preguiça extática, indescritível, inarbórea, uivando a sua adoração, a fria Armande dir-lhe-ia que se levantasse e deixasse de se armar em parvo. Os nomes mais ardentes que conseguia imaginar – minha princesa, minha querida, meu anjo, meu bichinho, minha fera felina – só a exasperavam. “Mas por que razão”- perguntava ela, “não consegues falar comigo de uma forma humana, natural, como um cavalheiro fala com uma senhora, por que tens de inventar estas palhaçadas, por que não consegues ser sério e simples e credível?”

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Viu um 313 muito preto sobre uma porta muito branca e lembrou-se instantaneamente de como tinha dito a Armande (que lhe prometera visitá-lo e não quis que a anunciassem): "Mnemonicamente deve ser imaginado como três homenzinhos de perfil, um preso que passa com um guarda que vai à frente e outro guarda atrás." Armande replicara que isso era muito complicado para ela e que o anotaria simplesemente na agendinha que trazia na carteira.

Vladimir Nabokov, Transparências (Trad. Margarida Santiago), Teorema

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