29/07/08

frases que trazem quadros ao de cima

( quadro de Eduardo Murcho, gritinho)


"Meu grito foi tão abafado que só pelo silêncio contrastante percebi que não havia gritado. O grito ficara me batendo dentro do peito."

Clarice Lispector, "a paixão segundo G.H.", relógio d'água

meter a mão ao bolso do

"O Tempo, doutor, é a própria serenidade combatendo a natureza. Uma vez, disse o príncipe, dispus-me aqui no Hochgobernitz a atrasar todos os dias os relógios uma hora, até que a certa altura estávamos atrasados três dias. Poderia perfeitamente ter atrasado os relógios do Hochgobernitz vários dias, semanas, até anos. Diverti-me mesmo! Quem viver todos os dias nem que seja uns instantes a mais, quando chegar ao fim tem mais uma vida vivida, disse o príncipe."


Thomas Bernhard, "perturbação", relógio d'água

correr lado a lado ao lado do tempo. ultrapassá-lo e ganhar, perdendo.

"A G.H. vivera muito, quero dizer, vivera muitos factos. Quem sabe eu tive de algum modo pressa de viver logo tudo o que tivesse a viver para que me sobrasse tempo de...de viver sem factos? de viver. Cumpri cedo os deveres de meus sentidos, tive cedo e rapidamente dores e alegrias - para ficar depressa livre do meu destino humano menor? e ficar livre para buscar a minha tragédia."

Clarice Lispector, "a paixão segundo G.H.", relógio d'água

27/07/08

Tu não te lembras?

‒ Isso aconteceu em Setembro. Não em Setembro deste ano mas sim do ano passado. Ou foi no ano anterior, Melitón?
‒ Não, foi no ano passado.
‒ Sim, eu bem me lembrava. Foi em Setembro do ano passado, pelo dia vinte e um. Ouve-me, Melitón, não foi a vinte e um de Setembro o dia do tremor de terra?
‒ Foi um pouco antes. Quer-me parecer que foi a dezoito.
‒ Tens razão. Eu por esses dias andava em Tuxcacuesco. Até vi quando se desmoronavam as casas como se fossem feitas de mel, simplesmente, retorciam-se assim, fazendo trejeitos, e vinham as paredes inteiras para o chão. E as pessoas saíam dos escombros todas aterrorizadas, correndo direitinhas para a igreja aos gritos. Mas esperem. Ouve, Melitón, parece-me que em Tuxcacuesco não existe nenhuma igreja. Tu não te lembras?
‒ Não há. Ali não restam senão umas paredes feitas em quatro bocados que dizem que foi a igreja há coisa de duzentos anos; mas ninguém se lembra dela, nem de como era; aquilo mais parece um curral abandonado infestado de figueirinhas.
‒ Dizes bem. Então não foi em Tuxcacuesco que me apanhou o tremor de terra, deve ter sido em El Pochote. Mas El Pochote é um rancho, não é?


Juan Rulfo, O dia do desmoranamento, in A Planície em Chamas (Trad. Ana Santos), cavalo de ferro

22/07/08

A lua

Juan Miró, A lua verde

A lua (dizem os ingleses)
É feita de queijo verde.
Por mais que pense mil vezes
Sempre uma ideia se perde.
E era essa, era, era essa,
Que haveria de salvar
Minha alma da dor da pressa
De sentir e de pensar*
Sim, todos os meus reveses
São de estar sentir pensando...
A Lua (dizem os ingleses)
É azul de quando em quando.

14. 11. 1931
(a.m. early)
* Var.: De... não sei se é desejar.
Fernando Pessoa, Quadras E Outros Cantares, Círculo de Leitores

19/07/08

SEM TÍTULO E BASTANTE BREVE

tenho o olhar preso aos ângulos escuros da casa
tento descobrir um cruzar de linhas misteriosas, e com elas
quero construir um templo em forma de ilha
ou de mãos disponíveis para o amor

na verdade, estou derrubado
sobre a mesa em fórmica suja duma taberna verde, não sei
onde
procuro as aves recolhidas na tontura da noite
embriagado entrelaço os dedos
possuo os insectos duros como unhas dilacerando
os rostos brancos das casas abandonadas, à beira-mar

dizem, que ao possuir tudo isto
poderia ter sido um homem feliz, que tem por defeito in-
terrogar-se acerca da melancolia das mãos
esta memória-lâmina incansável

um cigarro
outro cigarro vai certamente acalmar-me
que sei eu sobre tempestades do sangue? e da água?
no fundo, só amo o lado escondido das ilhas

amanheço dolorosamente, escrevo aquilo que posso
estou imóvel, a luz atravessa-me como um sismo
hoje, vou correr à velocidade da minha solidão

Al Berto, Degredo no Sul, Assírio & Alvim

É noite

É noite. Sinto que é noite
não porque a sombra descesse
(bem me importa a face negra)
mas porque dentro de mim,
no fundo de mim, o grito
se calou,fez-se desânimo.
Sinto que nós somos noite,
que palpitamos no escuro
e em noite nos dissolvemos.
Sinto que é noite no vento,
noite nas águas, na pedra.
E que adianta uma lâmpada?
E que adianta uma voz?
É noite no meu amigo.
É noite no submarino.
É noite na roça grande.
É noite, não é morte, é noite
de sono espesso e sem praia.
Não é dor, nem paz, é noite,
é perfeitamente a noite.
(...)

Carlos Drummond de Andrade

18/07/08

aves combatentes de bochechas vermelhas

Não lhes foi difícil encontrar a praça onde haveria as execuções: o povo convergia para lá de todas as direcções. Naquele século grosseiro, aquilo era um espectáculo dos mais divertidos, não só para a plebe mas também para as classes superiores. […]
No primeiro plano, ao lado dos soldados de bigodaça que constituíam a guarda municipal, estava um jovem szlachcic que vestira uma farda militar e tudo, mas tudo, o que tinha lá em casa para vestir, com excepção de uma camisa rota e de umas botas velhas. Pendiam-lhe do pescoço duas correntes com uma moedinha. Estava com a namorada e, volta e meia, olhava ao redor para que ninguém sujasse o vestido de seda da menina. Explicava-lhe tudo, mas tudo, exaustivamente. “Olhe, alminha – dizia ele –, aqui está o povo que veio ver a execução dos criminosos. E aquele homem que a menina vê ali e que tem nas mãos a acha e outros instrumentos é o carrasco que vai executar os criminosos. Antes, durante o suplício da roda, o criminoso ainda estará vivo, alminha, só morrerá de uma vez quando lhe cortarem a cabeça. Antes disso vai gritar e estrebuchar, mas quando o decapitarem já não poderá gritar, comer ou beber, porque, alminha, já não terá cabeça.” E a menina ouvia tudo com medo e curiosidade.

Nikolai Gógol,Tarás Bulba, in Mírgorod (trad. Nina Guerra e Filipe Guerra), Assírio & Alvim

17/07/08

papoulas breves

Vincent Van Gogh, Butterflies and Poppies, San Remy, 1890

sabes, as aves aquáticas já não pernoitam junto ao mar
nem por entre os nossos dedos de areia
sobem-nos vozes calcárias à garganta, estrangulo-me neste
humilde canto, fico atento ao eterno silêncio do teu castelo

às vezes escuto o teu cantar, raramente, é certo… mas quan-
do cantas saem-te nomes puros da boca e sorrisos diáfanos
de cristais
os lábios incendeiam-se com vinho, teu corpo adquire o sa-
bor misterioso das algas
no crepúsculo expande-se o pefume a moreia frita, teu
olhar é o mosto dos nossos desejos

dançamos à roda de um mastro, saia em papel de seda borda-
da com búzios… uma quadra flutua pela noite de nossos cabelos
rodopias, e os teus amores são relembrados pela noite adiante
espalham-se estrelas cadentes, papoulas breves, junco mo-
lhado
e o mar enche-se novamente de pássaros, embarcações se-
melhantes a beijos que nos percorrem de alegria

Al Berto, Degredo no Sul, Assírio & Alvim