25/11/08

respirar e ver

‒ Fui sempre um desgraçado ‒ disse. ‒ Mas mais que desgraçado, um miúdo. Certas noites custa-me ir dormir, porque me parece tempo perdido. Queria estar sempre desperto, disposto a respirar e a ver. Ver, ver sempre: bastar-me-ia. Para mim é um prazer enlouquecer, sair de casa e olhar o tempo, a gente que passa, sentir-lhe o perfume. Depois é bom pensar nisso. Há humilhações, mas paciência.

Cesare Pavese, vocação, in férias de agosto (Trad. Ana Hatherly), quasi

23/11/08

Transparências

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A cama era um pesadelo. A “casa de banho” tinha um bidé (suficientemente grande para que nele se instalasse um elefante de circo, sentado), mas não tinha banheira.

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Posso decorar uma página inteira da lista telefónica em três minutos exactos, mas sou incapaz de me lembrar do meu próprio número de telefone. Posso compor páginas de poesia tão estranha e nova como tu, ou como qualquer coisa que alguém possa escrever daqui a trezentos anos, mas nunca publiquei um verso sequer […] Posso levitar uma polegada e manter-me assim por dez segundos, mas não consigo trepar a uma macieira. Possuo uma licenciatura em Filosofia, mas não aprendi alemão. Apaixonei-me por ti, mas não farei nada quanto a isso. Em resumo, sou um génio absoluto.

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Se, como acontecia às vezes, nas horas mais cinzentas, sem a mais remota intenção sexual, ele interrompia a sua leitura, para ir até ao quarto dela avançando sobre os joelhos e os cotovelos, como uma preguiça extática, indescritível, inarbórea, uivando a sua adoração, a fria Armande dir-lhe-ia que se levantasse e deixasse de se armar em parvo. Os nomes mais ardentes que conseguia imaginar – minha princesa, minha querida, meu anjo, meu bichinho, minha fera felina – só a exasperavam. “Mas por que razão”- perguntava ela, “não consegues falar comigo de uma forma humana, natural, como um cavalheiro fala com uma senhora, por que tens de inventar estas palhaçadas, por que não consegues ser sério e simples e credível?”

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Viu um 313 muito preto sobre uma porta muito branca e lembrou-se instantaneamente de como tinha dito a Armande (que lhe prometera visitá-lo e não quis que a anunciassem): "Mnemonicamente deve ser imaginado como três homenzinhos de perfil, um preso que passa com um guarda que vai à frente e outro guarda atrás." Armande replicara que isso era muito complicado para ela e que o anotaria simplesemente na agendinha que trazia na carteira.

Vladimir Nabokov, Transparências (Trad. Margarida Santiago), Teorema

22/11/08

porcos-espinhos prateados

As únicas palavras que a abriam eram as palavras abafadas dos poetas, tão raramente proferidas pelos seres humanos. Somente elas a penetravam sem despertar os guardas eriçados, de vigia aos portões, trajados como porcos-espinhos prateados, armados de desconfiança, barrando o caminho que levava aos recessos secretos dos seus pensamentos e emoções.
Diante da maior parte das pessoas, da maior parte dos lugares, da maior parte das situações, da maior parte das palavras, o ser de Djuna, de dezasseis anos, fechava-se hermeticamente no silêncio. As sentinelas eriçavam-se: vem aí alguém! E todas as passagens que conduziam ao seu interior se fechavam.
Hoje, enquanto mulher adulta, conseguia perceber que essas sentinelas não se tinham limitado a defendê-la – tinham construído verdadeiros fortes sob essa máscara de branda timidez, fortes com buracos camuflados que escondiam armas construídas pelo medo.

Anaïs Nin, os Filhos do Albatroz (Trad. Tânia Ganho), Bico de Pena

12/11/08

a lua era feita de açúcar

quando era criança julgava que a lua era feita de açúcar. sentava-me no poial, olhava a roupa estendida a secar mover-se na brisa e os hibiscos vermelhos tremendo no fogo da lua cheia. ficava muito quieto, esperava que a noite se tornasse mais densa, misteriosa, e deixasse cair fios prateados sobre o jardim. acreditava que, um dia, a lua derreteria e todo o jardim se transformaria numa imensa doçaria. então, erguia os olhos para o negrume salpicado de astros, sentia-me ficar adulto. sentia-me crescer por dentro e por fora. no dia seguinte deixei de jogar ao berlinde.

Al Berto, O Medo, Assírio & Alvim

10/11/08

Lá e Não-aqui e Às-vezes

TANTAS CONSTELAÇÕES que
nos são oferecidas. Quando
para ti olhei ‒ foi quando? ‒ estava
lá fora nesses
outros mundos.

Oh, estes caminhos, galácticos,
Oh, esta hora que nos
trouxe as noites lançando-as
na carga dos nossos nomes. Não
é verdade, bem o sei,
que tenhamos vivido, passou,
cego, apenas um sopro entre
Lá e Não-aqui e Às-vezes,
como um cometa, um olho passava vibrante
em busca de fogos extintos, nos desfiladeiros,
no lugar do lume a apagar-se estava
o tempo num esplendor de tetas,
e por ele acima e abaixo já
crescia e passava o que
é ou foi ou há-de ser ‒,

eu sei,
eu sei e tu sabes, nós sabíamos,
não sabíamos, nós
afinal estávamos aqui e não lá
e às vezes, quando
entre nós só havia o Nada, o nosso
encontro era perfeito.

Paul Celan, Sete Rosas Mais Tarde (Trad. João Barrento e Y.K. Centeno), Livros Cotovia